quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

A formação do Jovem Artur



A formação do jovem Artur

Capítulo I- Infância

Chamava-se Artur porque o pai, na semana anterior ao parto da mulher, lera O Rei Artur, de Antoine de Troilet. Contrariou, assim, a vontade dela, católica fervorosa, que preferia Gabriel, o Anjo Anunciador. Artur servia-lhe na perfeição para moldar o filho conforme os seus ideais românticos e cavalheirescos com que julgava adoçar a sua crença positivista.
   Artur foi talhado nessa contradição. Jogava ao berlinde com os outros garotos e, quando o jogo parecia mais animado, interrompia-se subitamente e distraia-se a observar a refração da luz através de uma bolinha de vidro azul ou verde. Não era raro que, nesses momentos de atenção científica, se distraísse novamente com a música dos pintassilgos nos choupos do rio. Distraia-se a todo o instante com os odores e rumores da natureza, acreditando que esta encerrava mistérios que um dia haveria de decifrar.
   O pai ensinou-o a ler, ainda antes de poder frequentar a escola. Lia para ele romances de Walter Scott e o rebento franzino que o escutava com os olhos muito abertos para dominar o sono não entendia uma palavra mas imaginava as cenas. Cavaleiros ceifando com enormes espadas hordas horripilantes de fantasmas. Os únicos cavalos que conhecia eram de uma troupe de ciganos que acampava nas margens do rio nos verões assediando banhistas para lhes vender alpergatas espanholas.
  Adorava o pai. Afetuoso com os filhos, Marta e Artur, o doutor Vasco de Sepúlveda era um médico respeitado na vila, não levava dinheiro aos pobres porque não tinham. A mulher, seca de carnes e introvertida, governava-lhe a casa com eficiência.
   Acabava Artur de fazer sete anos de idade quando a tragédia se abateu sobre uma família feliz: o pai contraiu um cancro e demorou-se apenas seis meses. Nesse período terminal leu O Testamento de João Barois e redigiu o seu próprio: mantinha até à degradação do corpo as suas convicções maçónicas e anti-salazaristas. Foi sepultado no jazigo da família, uma longa fila de gerações Sepúlveda que remontava ao reinado de D. Manuel I. O funeral foi tristíssimo, o médico era muito estimado tanto pelos lavradores ricos como pelos pobres jornaleiros que sempre haviam encontrado nele um coração compadecido que não fazia distinção de classes e credos, exceto por umas tantas personagens que ocupavam os cargos políticos e que lhe vigiavam os seus ideais republicanos. O pároco oficiou a cerimónia, contrariando a última vontade do positivista anticlerical, cumprindo com gozo o pedido da viúva piedosa.
  A partir desse dia funesto a mãe de Artur entrou em silêncio, uma quase mudez, uma sombra perpétua de tristeza. Se já havia sido retraída nos afetos, mais ressequida ficou. Artur sentiu-se órfão e assim se sentiria a vida toda. Buscou afeto nos companheiros da escola primária, porém, estes, tratavam-no com desconfiança e hostilidade, mal toleravam como seu igual um garoto que almoçava iguarias que eles surdamente invejavam. Para mais ele era sempre o melhor aluno e, por isso, era poupado às reguadas frequentes que os demais levavam. Artur detestava a escola. Tudo nela era feio, mesquinho e cruel. Para chegar à escola tinha de caminhar ao longo da via de caminho-de-ferro, sob a chuva e o frio (um dia uma das crianças que fazia a mesma caminhada foi tolhida por um comboio, viu-lhe os miolos espalhados pelos carris e nunca mais o esqueceu) e a escola, de estilo “Estado Novo”, era apenas uma prisão com um recreio. Conheceu quatro mestres-escola: o primeiro era um indivíduo carrancudo (de facto padecia de uma cirrose que o levou depressa para o outro mundo) que achava que Artur “decorava demais”, avaliação que arrancara um sorriso desdenhoso ao doutor Sepúlveda; o segundo era uma mulher, nova ainda, que empunhava a “menina dos cinco olhos” com um prazer que se acaso Artur conhecesse a teoria de Freud encontraria nela uma explicação adequada; o terceiro, um senhor desempoeirado e risonho, reconciliou Artur com a escola e profetizou grandes feitos para o menino; o quarto, era um símio com aspeto de homem, maneta (do braço direito restava um coto), atarracado, feio e mau, que obrigava Artur a substitui-lo nas reguadas aos demais garotos, pois que só ele a tudo respondia certo. Uma terrível experiência para uma criança bondosa e inocente que chorava com a humilhação.
  Não terminou a quarta classe. Morto o marido, a mãe viu-se incapaz de manter uma casa enorme e dispendiosa, onde o fantasma do marido a assaltava a cada canto; com o pecúlio que o marido deixara a desaparecer rapidamente, decidiu-se por pegar nos filhos e partir para Moçambique, em cuja capital provincial, Lourenço Marques, um irmão, enfermeiro com uma vida abastada, lhe prometeu a solução dos infortúnios. Um escriturário da Câmara tratou-lhe dos papéis, era necessária uma autorização superior para se ingressar no lote de emigrados, ou seja de colonos, transportados gratuitamente para irem “desenvolver” a África portuguesa. Em Lisboa foram metidos num paquete. Arrancado de chofre de uma vila remota do Portugal “profundo”, a viagem marítima de duas semanas trouxe a Artur alegrias e deslumbramentos. O oceano imenso com os seus peixes “voadores”, as ondas alterosas que lhe provocavam um medo agradável, as dormidas em tarimba no meio de centenas de homens (as mulheres ocupavam outro andar do convés), o ritual da passagem da linha imaginária do Equador (um pequeno carnaval), a paragem durante uma tarde no porto do Funchal observando perplexo garotos da sua idade a mergulharem nas águas para apanharem as moedas que se lhes lançavam do convés.
  Assim cresceu. Sempre encostado às palavras, como se estas viessem suprir a ausência do abraço oportuno que lhe faltou. 
À pancadaria que distraía os fedelhos preferia uma linguagem limpa e clara, oferecida como uma donzela impoluta de brancas carnagens.
No liceu, quando a professora ensinava os binómios, apurava ele o ouvido para o rumorejar das acácias em flor, o resfolegar dos búfalos esmagando parasitas na casca dos embondeiros; com as equações de 2º grau, deixava-se levitar sobre a asa finíssima de uma nuvem que passava, viajando em oitenta dias sobre o estuário do Rio Amarelo, empoleirado no mastro de um junco de piratas. Com a batalha de Ourique, dava rédea solta ao alazão branco, rompendo a muralha de armaduras e músculos de moiros tisnados e esbeltos, com alaúdes a tiracolo. Desistiu das matemáticas, a bonita professora desistiu dele como aluno mas não como rapaz. Mostrava-se mais interessado e interessante noutras matérias. Redigia contos com cowboys e índios, inspirados versos sobre tambores ecoando na floresta africana como sinais de um apocalipse que ele pressentia.

  Não ficara com recordação alguma de Lisboa, de modo que, quando o paquete assomou a Lourenço Marques ficou espantado com a beleza da cidade, espraiada ao redor de uma baía majestosa. Os primeiros passeios ofereceram-lhe uma paisagem urbana que não mais encontrou outra igual em parte nenhuma: as largas avenidas com acácias em flor, os prédios novos entrecortados por edifícios em estilo colonial, o mercado repleto de odores estranhos e inebriantes…
  Repetiu a quarta classe que fora obrigado a interromper. Com facilidade ascendeu ao estatuto de melhor aluno provocando a inveja de um rapazola seu vizinho que lhe quis dar uma surra. No exame final e no exame para o Liceu foi classificado como o melhor estudante da província ultramarina.
  Entretanto, a mãe, que, afinal, não encontrara nenhum apoio no irmão que a chamara na mira de lhe sacar dinheiro da herança que ela recebera do marido, empregou-se numa mercearia onde se revelou a boa gestora que ela sempre fora, e ao cabo de algum tempo comprou-a ao proprietário que decidiu reformar-se. Recuperaram, portanto, alguma abundância material nos primeiros anos de 1960. Marta que não era dotada como o irmão ingressara na Escola Comercial e concluído o curso auxiliou a mãe a expandir o negócio das mercearias.
  Calhou que vieram residir em um dos apartamentos do “prédio do funcionário”, que se situava na Avenida Pinheiro Chagas, e foi aí, como vizinhos, que conheci Artur. Frequentávamos o mesmo Liceu, de António Enes, para o qual ingressei quando ele ocupava um espaço alugado, julgo eu, a uma Associação. Depois ergueram um edifício novo, bonito e moderno, que ainda hoje é uma das principais escolas do Maputo.
  Entre nós forjou-se uma amizade feita de afinidades e dissemelhanças. Se eu alguma vez lhe ensinei o que quer que fosse, aprendi muito mais com ele seguramente.
  Eramos diferentes, tanto no físico como no temperamento. Eu, magrito, relativamente baixo, de olhos escuros e propenso a melancolias; ele, muito alto, cabeleira negra abundante, olhos claros, desempoeirado, com um sorriso permanente entre o sardónico e o amigável, palavra fluente, sem ponta de timidez. É claro que atraía os olhares curiosos das raparigas que trocavam entre elas segredinhos e sorrisos matreiros. Um Dom Juan genuíno sem o crime e a devassidão.
   Não sei quando nem como Artur conheceu Gabriela. A rapariga era dona de uns belos olhos verdes que lhe mereceram a alcunha elogiosa de “Soraya”, a famosa esposa do Xá da Pérsia. A partir de determinada altura Artur estava menos acessível: viu-o em diversas ocasiões com a namorada em lugares estrategicamente diferentes ao longo de um círculo que distava, aproximadamente, quinhentos metros do liceu, dentro do qual eram estritamente proibidos encontros e conversas a sós entre condiscípulos de sexos diferentes; no interior da escola nem pensar em trocar beijinhos ou outros afetos; no entanto, nós e elas rodeávamos os obstáculos aproveitando, por exemplo, os ensaios conjuntos para apresentações teatrais (recordo, por exemplo, uma excelente interpretação da peça de Gil Vicente, “A Barca do Inferno”, onde Artur representou um Diabo realmente diabólico e a doce Gabriela o papel de Anjo). Aos bailaricos que se realizavam com frequência em agremiações da cidade Artur acorria com frequência. Eu dançava pessimamente enquanto ele depressa se revelou um hábil bailarino, provavelmente através de uma aprendizagem com a irmã, vantagem que eu não detinha, o que me provocava penosas frustrações e desperdício de oportunidades. Já Elvis Presley se via ultrapassado pelos Beatles e as miúdas esquentavam a cabeça dos rapazes exibindo sem pudor as coxas firmes nos voos acrobáticos. Porém, enquanto eu deambulava de paixoneta em paixoneta, bastando para tanto a visão fugaz de uma teenager que me dedicasse um olhar “comprido e morno” como escreve algures Jorge Amado, ao meu amigo Artur bastava-lhe a sua Gabriela de cabelo curto e olhos verdes. Dizendo melhor: bastou-lhe algum tempo.
  A chegada das “inglesas” anualmente às praias de Lourenço Marques (famílias de brancos sul-africanos que, vindos das regiões interiores a sudeste, buscavam as águas tépidas da baía), alvoroçavam a miudagem. Os estudantes com dois meses de férias pela frente repartiam os dias entre as atividades desportivas e a “caça” às meninas muito loiras e muito brancas que arribavam à cidade a arfar de hormonas e espectativas. Artur e eu próprio não fazíamos exceção nessa largada impetuosa. Passei a dispor de uma namorada sazonal, a Mariki, com a qual trocava correspondência num inglês de aprendiz (filha de um pequeno agricultor “bóer” possuía uma pele ebúrnea e uns cabelos de oiro). Artur ataviou-se não sei com quantas, com ordem e disciplina, organizando os encontros com uma perícia militar. Gabriela, vigiada por um pai que se regia pelas regras severas da época, passava esses períodos gloriosos da juventude na pequena povoação rústica onde residia bem afastada da capital.

  Metade da sua vida fora imaginação. A outra metade uma incansável batalha contra a injustiça. De facto, a injustiça sempre lhe repugnara desde os primeiros anos de vida. A crueldade de um bêbado que espancara um cão sarnento que pedia desculpas por estar vivo; a crueldade de um bando de hienas brancas que abusavam de um garoto negro, entre risadas e obscenidades; a crueldade com que as “senhoras” tratavam os seus criados negros; a crueldade de uma ditadura que oprimia os povos da metrópole e das colónias, extorquindo-lhes o suor e a esperança. Dos pormenores, das partes, dos elos de uma cadeia, alcançara a totalidade. Pousando numa nuvem, vira as causas e as consequências. Um oceano de cadáveres sem culpa, de náufragos pedindo socorro, de conquistadores espetando com chuços o ventre das mulheres, de assassinos fardados de negro que antes haviam sido submissos empregados de escritório a vigiarem famílias inocentes que cavavam as suas próprias sepulturas, de indivíduos de perfis sinistros que espiavam estudantes nos cafés. Vista do alto a humanidade parecia-lhe um compacto luzeiro de almas sufocadas de angústia e solidão. Artur enganava à primeira vista: parecia de todo um folgazão frívolo, todavia desenvolvia-se nele um universo interior rico e complexo. Uma paleta de cores vivas e contrastantes: romântico, por um lado, idealizava amores infinitos e combates corpo a corpo com as tiranias, tombando no campo da batalha com a bandeira pousada no peito como o Andrei Bolkonsky de Guerra e Paz, de Tolstoi; por outro, de mente aberta e exigente, não adorava mistérios transcendentes nem ajoelhava perante o insondável; ao Miserere de Händel preferia a 5ª sinfonia de Beethoven, ao Dostoievski de Os irmãos Karamazov preferia o Stendhal de A Cartuxa de Parma.
  Viu também, num paradoxo que sempre o fascinou, que o mal e o bem podem surgir do mesmo lugar, que a intempérie robustece o carvalho aferrado entre dois penedos da serrania, que a esperança é a filha dileta do medo e, todavia, ela, bem medida e pesada, era uma força que levantava massas humanas imensas em ondas hercúleas que acordavam cidades e arrasavam altares.
  Era no tempo em que liamos as aventuras formidáveis de Tom Sawyer e Hukleberry Finn (ambos lemos todos os livros da coleção “Livros para rapazes” da Portugália Editora e por esse feito recebemos um prémio). Era no tempo em que lemos O amante de Lady Chatterley às escondidas dos adultos, esse romance de iniciação ao amor físico que a santa madre igreja proibira. E ambos os géneros completavam-se, porque se um satisfazia a nossa ânsia por viagens e descobertas, o outro abençoava o nosso desejo juvenil de amores carnais mas infinitos.





Capítulo II - A formação de Artur
  A mente fecunda do meu amigo atravessou três fases consecutivas a que corresponderam igual número de crises intelectuais da sua formação ideológica chamemos-lhe assim. Mais valia dizer filosófica, pois que Artur, excetuando a primeira, não “embarcava” em credos superficiais. O abandono da religião, por exemplo, não exprimiu crise alguma dolorosa: preparado pela identificação com um pai anticlerical que ele venerava, desfez-se com facilidade dos dogmas cristãos, para tristeza da mãe e irmã. Viria mais tarde a compreender os efeitos contraditórios da igreja naquela parte da chamada “África portuguesa”, o seu proselitismo que necessitava que os pobres existissem para que o “espírito de missão” encontrasse um solo para a sementeira, ao mesmo tempo que, ou por causa disso, os socorria e lhes oferecia a educação escolar que o regime lhes negava.
  A segunda fase não foi uma descoberta, mas uma experiência necessária de superação: Artur liderou uma manifestação pública de repúdio da ocupação de Goa pela República Indiana, que percorreu a cidade e desembocou, obrigatoriamente, às portas do Governo provincial, onde teve a satisfação de ser recebido aos portões pelo governador em pessoa, um político inteligente que soube lidar com essa situação constrangedora para um regime que proibia as manifestações espontâneas. Essa atitude provocou no ingénuo Artur um fogacho de entusiasmo “imperialista”: leu para os altifalantes do liceu uma fervorosa evocação, da sua autoria, da grandeza e glória do império lusitano. Foi muito cumprimentado pelo reitor e professores prosélitos da ditadura, que viram nele um futuro tribuno da União Nacional. Porém, a ele passou-lhe depressa o chauvinismo que já a História chutava para fora.
  A terceira fase classifico-a como Teoria Geral do Racismo.
  Era nosso hábito conversarmos à noite sentados nas largas escadarias do prédio em que eu residia. Por vezes três ou quatro amigos, noutras apenas os dois. Foi numa dessas vigílias notívagas, onde já fumávamos um cigarrito, que ele desfiou a seguinte teoria: “ Se reparares bem à tua volta, e se refletires sobre o temos lido do Sartre, do Camus, mas, sobretudo se refletires no que vês aqui mesmo, nesta cidade, nos matos onde fazemos os nossos acampamentos, na África do Sul donde nos chegam as “bifas”, terás de concluir que o racismo é o grande denominador comum, melhor: o grande divisor comum. Tu próprio ainda não te livraste dele, nem eu, podes crer. Bem no fundo, por baixo do nosso franco companheirismo com os nossos (poucos) condiscípulos negros, espreita de vez em quando um certo racismo.” “Esses não largam mau cheiro…”- disse eu. “Correto! E muito provavelmente algum deles ainda vai ser presidente da República negra de Moçambique…” “Sim, têm boas notas alguns!“ “Claro, já reparei, e a facilidade natural com que os negros aprendem os desportos e o jeito natural para a dança, porra! os gajos dançam bem! Porém, vemo-los muito pouco nos bailes…” “Racismo?” “É claro, e não estaremos a ser racistas de certo modo quando atribuímos caraterísticas étnicas elogiosas? Não escapamos aos estereótipos. É necessário sintetizar, extrair conclusões sobre os dados empíricos” “Generalizar?” “Melhor do que isso. Construir uma teoria, uma teoria que desmonte os preconceitos com os quais se construíram doutrinas. O antissemitismo que conduziu ao Holocausto tem sido, por isso, o mais estudado, mas há que estudar melhor o racismo do Ocidente baseado na cor da pele, negros, “amarelos”, índios, ciganos, vamos mais longe: racismo dos povos do norte europeu sobre os povos do sul, alemães sobre os eslavos.”

 “Todos os povos são racistas, é isso?” “ Aí é que começa a minha teoria precisamente! É certo que a espécie humana receia o desconhecido, assim como sente inveja pelo vizinho. Contudo, daí ao racismo vai alguma distância. Invadir e conquistar sim; de resto, a guerra, a violência, acompanha toda a história humana.” “Nós ambos, tão novos que ainda somos, o que sabemos da história humana é ainda bem pouco.” “Certamente, porém do que sabemos pode-se deduzir o resto. Qual foi a marca da expansão e das conquistas dos portugueses no século dezasseis? O espírito das cruzadas a dar o mote à cobiça das especiarias, um rol de violências sem fim, os governadores das Índias trucidavam mulheres e crianças, extraíam os fetos das barrigas das mulheres grávidas à espadeirada; logo a seguir o negócio da escravatura em que fomos pioneiros e os últimos a aboli-lo.” “Todos os outros povos europeus fizeram outro tanto!” “Perfeitamente! Aí está a minha teoria: O Ocidente criou o racismo! O racismo impregnou as relações humanas da civilização moderna. Eis, querido amigo, o que penso: o racismo começa por preconceitos, a seguir, quando convém, estes convertem-se em doutrinas; ou seja, constrói-se uma imagem totalmente negativa do Outro, a imagem de um indivíduo sub-humano, um mero instrumento de trabalho. Frederico Nietzsche, inquestionavelmente um enorme filósofo, procedeu à seguinte operação que exprime bem as doutrinas racistas: engrandeceu o Supra-Homem amesquinhando a massa, a multidão dos “fracos”, dos destinados a obedecer. No entanto, as explicações baseadas na psicologia ou numa pretensa “natureza humana” não chegam ao miolo, ficam na casca. Contêm o perigo de nos conduzir ao pessimismo: «Somos assim e não há nada a fazer!». Não, o cerne dos racismos aloja-se nas sociedades modernas. Para mim é evidente que é um determinado meio social que segrega as discriminações. Ou não, porque o modo como é valorizada a violência ou desvalorizada diverge de sociedade para sociedade. Tal como existem macacos que matam outros macacos para os comer, assim existem outros que inventaram estratégias para viver em paz. Queres saber o que é homem? Decifra os valores que lhe estão a ser incutidos! Para se implantar a ordem da dominação dos fortes construíram-se justificações. O racismo não emana dos instintos mas da imaginação. Não se nasce racista, fazemo-nos. Não abarca exclusivamente o ódio entre “raças”, tanto mais que estas não existem, mas sim o ódio, ou desprezo, das classes e castas dominantes, a discriminação que exprime e reforça a desigualdade. Pela imaginação criamos, pela imaginação destruímos! Ora, quando se desenvolveu um imaginário racista? Quando se expandiu um esclavagismo racista? A partir da Modernidade! Parece paradoxal, mas é isso que eu acho. O cristianismo que perseguiu os judeus doutrinou as cruzadas contra os mouros para mais tarde animar a nobreza conquistadora das Índias; nova etapa: nobres e burgueses, ouro e prata, açúcar e algodão, escravos, Brasil, América, África do Sul, não esquecendo o Congo belga. A religião deixou de ser necessária: com nacionalismos ou sem eles, o racismo puro e duro, o novo colonialismo sem disfarces! A força bruta dos canhões!”
Posta a questão nestes termos, o desafio era descortinar uma solução. Aos dezoito anos de idade (ou dezassete?) não a conhecíamos. Ficávamos pela conclusão, errada ou não, de que já se havia ensaiado todas as experiências possíveis. Duvido que Artur haja perseguido a imagem utópica de uma sociedade perfeita, mas não afasto essa possibilidade pois que ele me pareceu sempre, como já o disse, a pura contradição entre um intelecto dubitativo e um temperamento romântico. Dirás, caro leitor, que Artur lera provavelmente Jean-Jacques Rousseau; nessa altura garanto que não. De resto, a base da teoria do autor de O Contrato Social é a hipótese do «bom selvagem», e nada disto correspondia à opinião do meu jovem amigo: segundo ele, pelo contrário, cada um nasce como um simples organismo vivo cuja “vontade” é exclusivamente sobreviver nas condições mais vantajosas; a Natureza não conhece o Bem e o Mal.
  Somente muito mais tarde me apercebi de uma certa fragilidade na argumentação do jovem Artur. As suas ideias não eram inovadoras em 1965 ou 66. Grandes combates desenrolavam-se contra o racismo e o colonialismo por todo o planeta. Malcom X organizara o Movimento “Panteras Negras” que censurava os métodos pacifistas do pastor Martin Luther King, e desenvolvera uma doutrina da raça negra orgulhosa da sua identidade. O que continua a parecer-me interessante era aquela teoria ter sido exposta por um ainda quase miúdo, estudante liceal numa cidade colonial onde tudo era reprimido e censurado. Além disto, a sua tese de que o cristianismo (católico ou reformado) não foi apenas o “espírito do capitalismo” empreendedor, positivo como queria Max Weber, mas, sobretudo, o instrumento ideológico do racismo, merece ainda ser investigada.
 
  Artur optara pelo curso liceal de Letras, a sua vocação estava na História. Na turma do sétimo ano, a única que então se abrira, fez amizade com um condiscípulo negro que viria a ser ministro num governo da Frelimo após a independência. Este, discreto e carrancudo para os demais colegas, conversava com Artur sobre temas políticos e abriu-lhe um novo caminho filosófico: o marxismo. Nas criações que Artur realizou no percurso liceal recordo a edição de uma revista, audições públicas de música clássica, ator de teatro, récitas públicas de poesia (particularmente de José Régio de que ele foi um divulgador naquela cidade onde os eventos culturais eram coisa rara). Artur tinha energia para dar e vender, uma magnífica força criadora. O seu único comportamento que me deixou surpreendido pela negativa foi o modo algo cruel como se “desembaraçou” da Gabriela, do qual, devo dizer, se arrependeu com amargura sincera. A rapariga transferira-se para o Liceu Salazar por desgosto.
  Terminado o curso liceal cada um de nós seguiu cursos universitários diferentes em cidades diferentes, eu, em Lisboa, ele, no Porto. Os encontros tornaram-se mais esparsos. Artur envolveu-se nas lutas estudantis. Foi preso pela PIDE várias vezes. Não pôde concluir o curso superior, foi mobilizado para a guerra em África. Entretanto, já havia publicado um romance com enorme sucesso, «Os colonos»: narra, como sabeis, a saga de uma família, através de sucessivas gerações, que emigrou para Moçambique nos finais do século dezanove, após a derrota do Gungunhana, e fez uma fortuna colossal vendendo álcool aos indígenas, submetendo-os deste modo; em seguida, utilizando o trabalho escravo, apropriou-se das melhores terras para cultivo: um retrato da ascensão do colonialismo até à irrupção da revolta armada. O livro, de 1971, transmite, sob forma literária, a tese já formulada por Artur quando muito jovem: as possessões portuguesas em África apenas na década de cinquenta receberam um influxo de desenvolvimento com as vagas de colonos, quando já os independentismos se anunciavam por todo o globo e os impérios coloniais europeus ruíam; nesse sentido, os colonos viviam numa ficção. Com a colonização de massas Salazar calou as revoltas sociais eminentes na Metrópole e tentou adiá-las nas colónias.
  Mantínhamos contacto pelo telefone quando tratávamos de assuntos políticos, para conversas que não atraíssem demasiado a polícia política servíamo-nos da correspondência escrita. A carta que transcrevo a seguir foi a última que recebi dele.
“ Querido amigo:
O aquartelamento no distrito de Tete onde me encontro não é mau de todo, ou apesar de tudo. Come-se razoavelmente bem e bebe-se muito, de vez em quando as bebedeiras minam completamente a disciplina militar…O capitão da minha companhia é um tipo porreiro. Odeia a guerra e a ditadura. Empresto-lhe livros que lhe fazem bom proveito. Contudo, estamos no centro da guerra e este é um facto irremediável, temos de atacar e defendermo-nos. Em Dezembro três povoações indígenas, Wiriyamu, Chawola e Juwaua, distantes a uns 20km da cidade de Tete, foram arrasadas: aviões bombardearam-nas, a seguir paraquedistas, comandos especiais, Flechas (companhias de negros “integrados”) e pides, transportados em helicópteros, incendiaram as palhotas, o povo tentou fugir, a soldadesca e os pides impediram, reuniram os habitantes e obrigaram-nos a bater as palmas para se despedirem da vida, depois fuzilaram-nos à queima-roupa, juntaram os corpos, cobriram-nos de capim e deitaram-lhes fogo. Crianças, mulheres, velhos. Um morticínio à boa maneira dos cowboys americanos no Vietnam. Somente o racismo pode explicar mais este “feito heroico” que devia envergonhar-nos a todos. Consta que a igreja de cá não anda nada satisfeita com o que se passou. A aldeia, de nome Wiriyamu, provavelmente vai constar do Livro Negro do colonialismo. Devo esclarecer para que não faças juízo errado, não embarco em esquemas simplistas do género “somente são culpados os de cima”. Digo-te porquê: porque assisto a barbaridades cometidas pela soldadesca que não se limita a esperar ordens dos generais e a cumpri-las, comporta-se brutalmente racista a toda a hora. Todo este horror será esquecido quando esta guerra terrorista terminar? Escreveu Jean-Paul Sartre “Quando os ricos fazem as guerras são sempre os pobres que morrem nelas.” Esqueceu-se de acrescentar que são os “pobres” que sujam as mãos e que acreditam nas doutrinas sanguinárias. Contrariando ordens superiores fui inspecionar os vestígios do massacre em Wiriyamu e Chawola: uma enorme vala comum que buldózeres haviam coberto com terra e capim. Uma mulher jovem e um ancião olharam-me com olhos de luto. Senti uma náusea revolver-me o estômago. Durante dois dias perdi o petite e a vontade de falar…Mudando de assunto: nunca mais me cruzei com a Gabriela depois do desenlace do nosso namoro. Tenho ido a Lourenço Marques mas não a procurei. Sinto por ela nostalgia, porque não dizer: saudade? “Um imenso adeus” para evocar a obra-prima do Raymond Chandler. Recordo com remorso o olhar triste que me pôs quando, um ano depois da maldade que lhe fiz, a vi sentada sozinha num banco do Jardim Botânico. Não sou boa pessoa, caro amigo, sou demasiado humano…A Gabriela é a única mulher que me provoca saudade e arrependimento. Quando somos jovens devíamos encarar o oceano e vê-lo não apenas como a vasta pradaria de ondas que ansiamos conquistar, mas também enquanto babugem, espuma que se dissolve na areia…Dentro de duas semanas acaba-se a minha tropa e regresso à Metrópole. Tenho outro romance na calha, desta vez sobre a guerra. Enfim, aguardo com prazer um grande almoço contigo. Um abraço deste teu amigo que não te esqueceu!” 22 de Março de 1972
Foi a última carta do Artur. Alguns dias depois de tê-la enviado, durante uma missão, o unimog tropeçou numa mina. O soldado motorista morreu imediatamente. Artur foi helitransportado gravemente ferido. De um hospital da cidade da Beira levaram-no para a Metrópole para convalescer. Contraiu stress pós-traumático. Não terminou o curso superior nem se conservou muito tempo em profissão alguma. Nunca mais publicou o que quer que fosse. Deambulou pelo mundo em busca de um alívio para o seu martírio. Suicidou-se no ano em que o século terminou. Com esse ato carregado de simbolismo desceu o pano sobre cem anos de tragédias.
  Conto esta história – a parte desconhecida da biografia de um grande escritor – por que senti, nesta velhice em que me encontro, a urgente necessidade de demonstrar aos seus inúmeros leitores a perda trágica de um ser humano de exceção que poderia ter criado muitas mais obras admiráveis não fosse aquela inútil e criminosa guerra que o ceifou.
  O romance Os colonos está traduzido em várias línguas, várias vezes premiado, e é objeto de estudo nas mais prestigiadas academias pelo rigor e detalhe com que aborda os racismos. Atualmente é comparado com o celebrizado romance As Benevolentes, de Jonathan Littell. Se este retrata de modo quase sufocante o mal absoluto, o romance de Artur de Sepúlveda obriga-nos também a mergulhar nos abismos primitivos da alma humana. Os Colonos provocaram, e ainda provocam, agitação, porque sob os desígnios perverso da ditadura não se elide a culpa coletiva.
FIM
NOZES PIRES