A formação do jovem Artur
Capítulo I- Infância
Chamava-se Artur porque o pai, na semana anterior ao parto da mulher, lera O Rei Artur, de Antoine de Troilet. Contrariou, assim, a vontade dela, católica fervorosa, que preferia Gabriel, o Anjo Anunciador. Artur servia-lhe na perfeição para moldar o filho conforme os seus ideais românticos e cavalheirescos com que julgava adoçar a sua crença positivista.
Artur foi talhado nessa contradição. Jogava ao berlinde com os outros garotos e, quando o jogo parecia mais animado, interrompia-se subitamente e distraia-se a observar a refração da luz através de uma bolinha de vidro azul ou verde. Não era raro que, nesses momentos de atenção científica, se distraísse novamente com a música dos pintassilgos nos choupos do rio. Distraia-se a todo o instante com os odores e rumores da natureza, acreditando que esta encerrava mistérios que um dia haveria de decifrar.
O pai ensinou-o a ler, ainda antes
de poder frequentar a escola. Lia para ele romances de Walter Scott e o rebento
franzino que o escutava com os olhos muito abertos para dominar o sono não
entendia uma palavra mas imaginava as cenas. Cavaleiros ceifando com enormes
espadas hordas horripilantes de fantasmas. Os únicos cavalos que conhecia eram
de uma troupe de ciganos que acampava nas margens do rio nos verões assediando
banhistas para lhes vender alpergatas espanholas.
Adorava o pai. Afetuoso com os filhos, Marta e Artur, o doutor Vasco de Sepúlveda era um médico respeitado na vila, não levava dinheiro aos pobres porque não tinham. A mulher, seca de carnes e introvertida, governava-lhe a casa com eficiência.
Adorava o pai. Afetuoso com os filhos, Marta e Artur, o doutor Vasco de Sepúlveda era um médico respeitado na vila, não levava dinheiro aos pobres porque não tinham. A mulher, seca de carnes e introvertida, governava-lhe a casa com eficiência.
Acabava Artur de fazer sete anos
de idade quando a tragédia se abateu sobre uma família feliz: o pai contraiu um
cancro e demorou-se apenas seis meses. Nesse período terminal leu O Testamento de João Barois e redigiu o
seu próprio: mantinha até à degradação do corpo as suas convicções maçónicas e
anti-salazaristas. Foi sepultado no jazigo da família, uma longa fila de
gerações Sepúlveda que remontava ao reinado de D. Manuel I. O funeral foi
tristíssimo, o médico era muito estimado tanto pelos lavradores ricos como
pelos pobres jornaleiros que sempre haviam encontrado nele um coração
compadecido que não fazia distinção de classes e credos, exceto por umas tantas
personagens que ocupavam os cargos políticos e que lhe vigiavam os seus ideais
republicanos. O pároco oficiou a cerimónia, contrariando a última vontade do
positivista anticlerical, cumprindo com gozo o pedido da viúva piedosa.
A partir desse dia funesto a mãe de
Artur entrou em silêncio, uma quase mudez, uma sombra perpétua de tristeza. Se
já havia sido retraída nos afetos, mais ressequida ficou. Artur sentiu-se órfão
e assim se sentiria a vida toda. Buscou afeto nos companheiros da escola
primária, porém, estes, tratavam-no com desconfiança e hostilidade, mal
toleravam como seu igual um garoto que almoçava iguarias que eles surdamente
invejavam. Para mais ele era sempre o melhor aluno e, por isso, era poupado às
reguadas frequentes que os demais levavam. Artur detestava a escola. Tudo nela
era feio, mesquinho e cruel. Para chegar à escola tinha de caminhar ao longo da
via de caminho-de-ferro, sob a chuva e o frio (um dia uma das crianças que
fazia a mesma caminhada foi tolhida por um comboio, viu-lhe os miolos
espalhados pelos carris e nunca mais o esqueceu) e a escola, de estilo “Estado
Novo”, era apenas uma prisão com um recreio. Conheceu quatro mestres-escola: o
primeiro era um indivíduo carrancudo (de facto padecia de uma cirrose que o
levou depressa para o outro mundo) que achava que Artur “decorava demais”,
avaliação que arrancara um sorriso desdenhoso ao doutor Sepúlveda; o segundo
era uma mulher, nova ainda, que empunhava a “menina dos cinco olhos” com um
prazer que se acaso Artur conhecesse a teoria de Freud encontraria nela uma
explicação adequada; o terceiro, um senhor desempoeirado e risonho, reconciliou
Artur com a escola e profetizou grandes feitos para o menino; o quarto, era um
símio com aspeto de homem, maneta (do braço direito restava um coto),
atarracado, feio e mau, que obrigava Artur a substitui-lo nas reguadas aos
demais garotos, pois que só ele a tudo respondia certo. Uma terrível
experiência para uma criança bondosa e inocente que chorava com a humilhação.
Não terminou a quarta classe. Morto
o marido, a mãe viu-se incapaz de manter uma casa enorme e dispendiosa, onde o
fantasma do marido a assaltava a cada canto; com o pecúlio que o marido deixara
a desaparecer rapidamente, decidiu-se por pegar nos filhos e partir para
Moçambique, em cuja capital provincial, Lourenço Marques, um irmão, enfermeiro
com uma vida abastada, lhe prometeu a solução dos infortúnios. Um escriturário
da Câmara tratou-lhe dos papéis, era necessária uma autorização superior para
se ingressar no lote de emigrados, ou seja de colonos, transportados
gratuitamente para irem “desenvolver” a África portuguesa. Em Lisboa foram
metidos num paquete. Arrancado de chofre de uma vila remota do Portugal
“profundo”, a viagem marítima de duas semanas trouxe a Artur alegrias e
deslumbramentos. O oceano imenso com os seus peixes “voadores”, as ondas
alterosas que lhe provocavam um medo agradável, as dormidas em tarimba no meio
de centenas de homens (as mulheres ocupavam outro andar do convés), o ritual da
passagem da linha imaginária do Equador (um pequeno carnaval), a paragem
durante uma tarde no porto do Funchal observando perplexo garotos da sua idade
a mergulharem nas águas para apanharem as moedas que se lhes lançavam do
convés.
Assim cresceu. Sempre encostado às
palavras, como se estas viessem suprir a ausência do abraço oportuno que lhe
faltou.
À pancadaria que distraía os fedelhos preferia uma linguagem limpa e clara, oferecida como uma donzela impoluta de brancas carnagens.
No liceu, quando a professora ensinava os binómios, apurava ele o ouvido para o rumorejar das acácias em flor, o resfolegar dos búfalos esmagando parasitas na casca dos embondeiros; com as equações de 2º grau, deixava-se levitar sobre a asa finíssima de uma nuvem que passava, viajando em oitenta dias sobre o estuário do Rio Amarelo, empoleirado no mastro de um junco de piratas. Com a batalha de Ourique, dava rédea solta ao alazão branco, rompendo a muralha de armaduras e músculos de moiros tisnados e esbeltos, com alaúdes a tiracolo. Desistiu das matemáticas, a bonita professora desistiu dele como aluno mas não como rapaz. Mostrava-se mais interessado e interessante noutras matérias. Redigia contos com cowboys e índios, inspirados versos sobre tambores ecoando na floresta africana como sinais de um apocalipse que ele pressentia.
À pancadaria que distraía os fedelhos preferia uma linguagem limpa e clara, oferecida como uma donzela impoluta de brancas carnagens.
No liceu, quando a professora ensinava os binómios, apurava ele o ouvido para o rumorejar das acácias em flor, o resfolegar dos búfalos esmagando parasitas na casca dos embondeiros; com as equações de 2º grau, deixava-se levitar sobre a asa finíssima de uma nuvem que passava, viajando em oitenta dias sobre o estuário do Rio Amarelo, empoleirado no mastro de um junco de piratas. Com a batalha de Ourique, dava rédea solta ao alazão branco, rompendo a muralha de armaduras e músculos de moiros tisnados e esbeltos, com alaúdes a tiracolo. Desistiu das matemáticas, a bonita professora desistiu dele como aluno mas não como rapaz. Mostrava-se mais interessado e interessante noutras matérias. Redigia contos com cowboys e índios, inspirados versos sobre tambores ecoando na floresta africana como sinais de um apocalipse que ele pressentia.
Não ficara com recordação alguma de
Lisboa, de modo que, quando o paquete assomou a Lourenço Marques ficou
espantado com a beleza da cidade, espraiada ao redor de uma baía majestosa. Os
primeiros passeios ofereceram-lhe uma paisagem urbana que não mais encontrou
outra igual em parte nenhuma: as largas avenidas com acácias em flor, os
prédios novos entrecortados por edifícios em estilo colonial, o mercado repleto
de odores estranhos e inebriantes…
Repetiu a quarta classe que fora
obrigado a interromper. Com facilidade ascendeu ao estatuto de melhor aluno
provocando a inveja de um rapazola seu vizinho que lhe quis dar uma surra. No
exame final e no exame para o Liceu foi classificado como o melhor estudante da
província ultramarina.
Entretanto, a mãe, que, afinal, não
encontrara nenhum apoio no irmão que a chamara na mira de lhe sacar dinheiro da
herança que ela recebera do marido, empregou-se numa mercearia onde se revelou
a boa gestora que ela sempre fora, e ao cabo de algum tempo comprou-a ao
proprietário que decidiu reformar-se. Recuperaram, portanto, alguma abundância
material nos primeiros anos de 1960. Marta que não era dotada como o irmão
ingressara na Escola Comercial e concluído o curso auxiliou a mãe a expandir o
negócio das mercearias.
Calhou que vieram residir em um dos
apartamentos do “prédio do funcionário”, que se situava na Avenida Pinheiro
Chagas, e foi aí, como vizinhos, que conheci Artur. Frequentávamos o mesmo
Liceu, de António Enes, para o qual ingressei quando ele ocupava um espaço
alugado, julgo eu, a uma Associação. Depois ergueram um edifício novo, bonito e
moderno, que ainda hoje é uma das principais escolas do Maputo.
Entre nós forjou-se uma amizade
feita de afinidades e dissemelhanças. Se eu alguma vez lhe ensinei o que quer
que fosse, aprendi muito mais com ele seguramente.
Eramos diferentes, tanto no físico
como no temperamento. Eu, magrito, relativamente baixo, de olhos escuros e
propenso a melancolias; ele, muito alto, cabeleira negra abundante, olhos
claros, desempoeirado, com um sorriso permanente entre o sardónico e o
amigável, palavra fluente, sem ponta de timidez. É claro que atraía os olhares
curiosos das raparigas que trocavam entre elas segredinhos e sorrisos matreiros.
Um Dom Juan genuíno sem o crime e a devassidão.
Não sei quando nem como Artur conheceu
Gabriela. A rapariga era dona de uns belos olhos verdes que lhe mereceram a
alcunha elogiosa de “Soraya”, a famosa esposa do Xá da Pérsia. A partir de
determinada altura Artur estava menos acessível: viu-o em diversas ocasiões com
a namorada em lugares estrategicamente diferentes ao longo de um círculo que
distava, aproximadamente, quinhentos metros do liceu, dentro do qual eram
estritamente proibidos encontros e conversas a sós entre condiscípulos de sexos
diferentes; no interior da escola nem pensar em trocar beijinhos ou outros
afetos; no entanto, nós e elas rodeávamos os obstáculos aproveitando, por
exemplo, os ensaios conjuntos para apresentações teatrais (recordo, por
exemplo, uma excelente interpretação da peça de Gil Vicente, “A Barca do
Inferno”, onde Artur representou um Diabo realmente diabólico e a doce Gabriela
o papel de Anjo). Aos bailaricos que se realizavam com frequência em
agremiações da cidade Artur acorria com frequência. Eu dançava pessimamente
enquanto ele depressa se revelou um hábil bailarino, provavelmente através de
uma aprendizagem com a irmã, vantagem que eu não detinha, o que me provocava
penosas frustrações e desperdício de oportunidades. Já Elvis Presley se via
ultrapassado pelos Beatles e as miúdas esquentavam a cabeça dos rapazes
exibindo sem pudor as coxas firmes nos voos acrobáticos. Porém, enquanto eu deambulava
de paixoneta em paixoneta, bastando para tanto a visão fugaz de uma teenager que me dedicasse um olhar
“comprido e morno” como escreve algures Jorge Amado, ao meu amigo Artur
bastava-lhe a sua Gabriela de cabelo curto e olhos verdes. Dizendo melhor:
bastou-lhe algum tempo.
A chegada das “inglesas” anualmente
às praias de Lourenço Marques (famílias de brancos sul-africanos que, vindos
das regiões interiores a sudeste, buscavam as águas tépidas da baía),
alvoroçavam a miudagem. Os estudantes com dois meses de férias pela frente
repartiam os dias entre as atividades desportivas e a “caça” às meninas muito
loiras e muito brancas que arribavam à cidade a arfar de hormonas e
espectativas. Artur e eu próprio não fazíamos exceção nessa largada impetuosa.
Passei a dispor de uma namorada sazonal, a Mariki, com a qual trocava
correspondência num inglês de aprendiz (filha de um pequeno agricultor “bóer”
possuía uma pele ebúrnea e uns cabelos de oiro). Artur ataviou-se não sei com
quantas, com ordem e disciplina, organizando os encontros com uma perícia
militar. Gabriela, vigiada por um pai que se regia pelas regras severas da
época, passava esses períodos gloriosos da juventude na pequena povoação rústica
onde residia bem afastada da capital.
Metade da sua vida fora imaginação.
A outra metade uma incansável batalha contra a injustiça. De facto, a injustiça
sempre lhe repugnara desde os primeiros anos de vida. A crueldade de um bêbado que
espancara um cão sarnento que pedia desculpas por estar vivo; a crueldade de um
bando de hienas brancas que abusavam de um garoto negro, entre risadas e
obscenidades; a crueldade com que as “senhoras” tratavam os seus criados negros;
a crueldade de uma ditadura que oprimia os povos da metrópole e das colónias,
extorquindo-lhes o suor e a esperança. Dos pormenores, das partes, dos elos de
uma cadeia, alcançara a totalidade. Pousando numa nuvem, vira as causas e as
consequências. Um oceano de cadáveres sem culpa, de náufragos pedindo socorro,
de conquistadores espetando com chuços o ventre das mulheres, de assassinos
fardados de negro que antes haviam sido submissos empregados de escritório a
vigiarem famílias inocentes que cavavam as suas próprias sepulturas, de
indivíduos de perfis sinistros que espiavam estudantes nos cafés. Vista do alto
a humanidade parecia-lhe um compacto luzeiro de almas sufocadas de angústia e
solidão. Artur enganava à primeira vista: parecia de todo um folgazão frívolo,
todavia desenvolvia-se nele um universo interior rico e complexo. Uma paleta de
cores vivas e contrastantes: romântico, por um lado, idealizava amores
infinitos e combates corpo a corpo com as tiranias, tombando no campo da
batalha com a bandeira pousada no peito como o Andrei Bolkonsky de Guerra e Paz, de Tolstoi; por outro, de
mente aberta e exigente, não adorava mistérios transcendentes nem ajoelhava
perante o insondável; ao Miserere de
Händel preferia a 5ª sinfonia de Beethoven, ao Dostoievski de Os irmãos Karamazov preferia o Stendhal de A Cartuxa de Parma.
Viu também, num paradoxo que sempre
o fascinou, que o mal e o bem podem surgir do mesmo lugar, que a intempérie
robustece o carvalho aferrado entre dois penedos da serrania, que a esperança é
a filha dileta do medo e, todavia, ela, bem medida e pesada, era uma força que
levantava massas humanas imensas em ondas hercúleas que acordavam cidades e
arrasavam altares.
Era no tempo em que liamos as
aventuras formidáveis de Tom Sawyer e Hukleberry Finn (ambos lemos todos os
livros da coleção “Livros para rapazes” da Portugália Editora e por esse feito
recebemos um prémio). Era no tempo em que lemos O amante de Lady Chatterley às escondidas dos adultos, esse romance
de iniciação ao amor físico que a santa madre igreja proibira. E ambos os géneros
completavam-se, porque se um satisfazia a nossa ânsia por viagens e
descobertas, o outro abençoava o nosso desejo juvenil de amores carnais mas
infinitos.
Capítulo II - A formação de Artur
A mente fecunda do meu amigo
atravessou três fases consecutivas a que corresponderam igual número de crises
intelectuais da sua formação ideológica chamemos-lhe assim. Mais valia dizer
filosófica, pois que Artur, excetuando a primeira, não “embarcava” em credos
superficiais. O abandono da religião, por exemplo, não exprimiu crise alguma
dolorosa: preparado pela identificação com um pai anticlerical que ele
venerava, desfez-se com facilidade dos dogmas cristãos, para tristeza da mãe e
irmã. Viria mais tarde a compreender os efeitos contraditórios da igreja naquela
parte da chamada “África portuguesa”, o seu proselitismo que necessitava que os
pobres existissem para que o “espírito de missão” encontrasse um solo para a
sementeira, ao mesmo tempo que, ou por causa disso, os socorria e lhes oferecia
a educação escolar que o regime lhes negava.
A segunda fase não foi uma
descoberta, mas uma experiência necessária de superação: Artur liderou uma
manifestação pública de repúdio da ocupação de Goa pela República Indiana, que
percorreu a cidade e desembocou, obrigatoriamente, às portas do Governo
provincial, onde teve a satisfação de ser recebido aos portões pelo governador
em pessoa, um político inteligente que soube lidar com essa situação constrangedora
para um regime que proibia as manifestações espontâneas. Essa atitude provocou
no ingénuo Artur um fogacho de entusiasmo “imperialista”: leu para os
altifalantes do liceu uma fervorosa evocação, da sua autoria, da grandeza e
glória do império lusitano. Foi muito cumprimentado pelo reitor e professores
prosélitos da ditadura, que viram nele um futuro tribuno da União Nacional.
Porém, a ele passou-lhe depressa o chauvinismo que já a História chutava para
fora.
A terceira fase classifico-a como Teoria Geral do Racismo.
Era
nosso hábito conversarmos à noite sentados nas largas escadarias do prédio em
que eu residia. Por vezes três ou quatro amigos, noutras apenas os dois. Foi
numa dessas vigílias notívagas, onde já fumávamos um cigarrito, que ele desfiou
a seguinte teoria: “ Se reparares bem à tua volta, e se refletires sobre o
temos lido do Sartre, do Camus, mas, sobretudo se refletires no que vês aqui
mesmo, nesta cidade, nos matos onde fazemos os nossos acampamentos, na África
do Sul donde nos chegam as “bifas”, terás de concluir que o racismo é o grande
denominador comum, melhor: o grande divisor comum. Tu próprio ainda não te
livraste dele, nem eu, podes crer. Bem no fundo, por baixo do nosso franco
companheirismo com os nossos (poucos) condiscípulos negros, espreita de vez em
quando um certo racismo.” “Esses não largam mau cheiro…”- disse eu. “Correto! E
muito provavelmente algum deles ainda vai ser presidente da República negra de
Moçambique…” “Sim, têm boas notas alguns!“ “Claro, já reparei, e a facilidade
natural com que os negros aprendem os desportos e o jeito natural para a dança,
porra! os gajos dançam bem! Porém, vemo-los muito pouco nos bailes…” “Racismo?”
“É claro, e não estaremos a ser racistas de certo modo quando atribuímos
caraterísticas étnicas elogiosas? Não escapamos aos estereótipos. É necessário sintetizar,
extrair conclusões sobre os dados empíricos” “Generalizar?” “Melhor do que
isso. Construir uma teoria, uma teoria que desmonte os preconceitos com os
quais se construíram doutrinas. O antissemitismo que conduziu ao Holocausto tem
sido, por isso, o mais estudado, mas há que estudar melhor o racismo do
Ocidente baseado na cor da pele, negros, “amarelos”, índios, ciganos, vamos
mais longe: racismo dos povos do norte europeu sobre os povos do sul, alemães
sobre os eslavos.”
“Todos os povos são racistas, é
isso?” “ Aí é que começa a minha teoria precisamente! É certo que a espécie humana
receia o desconhecido, assim como sente inveja pelo vizinho. Contudo, daí ao
racismo vai alguma distância. Invadir e conquistar sim; de resto, a guerra, a
violência, acompanha toda a história humana.” “Nós ambos, tão novos que ainda
somos, o que sabemos da história humana é ainda bem pouco.” “Certamente, porém
do que sabemos pode-se deduzir o resto. Qual foi a marca da expansão e das
conquistas dos portugueses no século dezasseis? O espírito das cruzadas a dar o
mote à cobiça das especiarias, um rol de violências sem fim, os governadores das
Índias trucidavam mulheres e crianças, extraíam os fetos das barrigas das
mulheres grávidas à espadeirada; logo a seguir o negócio da escravatura em que
fomos pioneiros e os últimos a aboli-lo.” “Todos os outros povos europeus
fizeram outro tanto!” “Perfeitamente! Aí está a minha teoria: O Ocidente criou
o racismo! O racismo impregnou as relações humanas da civilização moderna. Eis,
querido amigo, o que penso: o racismo começa por preconceitos, a seguir, quando
convém, estes convertem-se em doutrinas; ou seja, constrói-se uma imagem
totalmente negativa do Outro, a imagem de um indivíduo sub-humano, um mero
instrumento de trabalho. Frederico Nietzsche, inquestionavelmente um enorme
filósofo, procedeu à seguinte operação que exprime bem as doutrinas racistas:
engrandeceu o Supra-Homem
amesquinhando a massa, a multidão dos “fracos”, dos destinados a obedecer. No
entanto, as explicações baseadas na psicologia ou numa pretensa “natureza
humana” não chegam ao miolo, ficam na casca. Contêm o perigo de nos conduzir ao
pessimismo: «Somos assim e não há nada a fazer!». Não, o cerne dos racismos
aloja-se nas sociedades modernas. Para mim é evidente que é um determinado meio
social que segrega as discriminações. Ou não, porque o modo como é valorizada a
violência ou desvalorizada diverge de sociedade para sociedade. Tal como
existem macacos que matam outros macacos para os comer, assim existem outros
que inventaram estratégias para viver em paz. Queres saber o que é homem? Decifra
os valores que lhe estão a ser incutidos! Para se implantar a ordem da dominação
dos fortes construíram-se justificações. O racismo não emana dos instintos mas
da imaginação. Não se nasce racista, fazemo-nos. Não abarca exclusivamente o
ódio entre “raças”, tanto mais que estas não existem, mas sim o ódio, ou
desprezo, das classes e castas dominantes, a discriminação que exprime e
reforça a desigualdade. Pela imaginação criamos, pela imaginação destruímos!
Ora, quando se desenvolveu um imaginário racista? Quando se expandiu um
esclavagismo racista? A partir da Modernidade! Parece paradoxal, mas é isso que
eu acho. O cristianismo que perseguiu os judeus doutrinou as cruzadas contra os
mouros para mais tarde animar a nobreza conquistadora das Índias; nova etapa:
nobres e burgueses, ouro e prata, açúcar e algodão, escravos, Brasil, América,
África do Sul, não esquecendo o Congo belga. A religião deixou de ser
necessária: com nacionalismos ou sem eles, o racismo puro e duro, o novo
colonialismo sem disfarces! A força bruta dos canhões!”
Posta a questão nestes termos, o desafio era descortinar uma solução. Aos
dezoito anos de idade (ou dezassete?) não a conhecíamos. Ficávamos pela
conclusão, errada ou não, de que já se havia ensaiado todas as experiências
possíveis. Duvido que Artur haja perseguido a imagem utópica de uma sociedade
perfeita, mas não afasto essa possibilidade pois que ele me pareceu sempre,
como já o disse, a pura contradição entre um intelecto dubitativo e um
temperamento romântico. Dirás, caro leitor, que Artur lera provavelmente
Jean-Jacques Rousseau; nessa altura garanto que não. De resto, a base da teoria
do autor de O Contrato Social é a
hipótese do «bom selvagem», e nada disto correspondia à opinião do meu jovem
amigo: segundo ele, pelo contrário, cada um nasce como um simples organismo
vivo cuja “vontade” é exclusivamente sobreviver nas condições mais vantajosas;
a Natureza não conhece o Bem e o Mal.
Somente muito mais tarde me
apercebi de uma certa fragilidade na argumentação do jovem Artur. As suas
ideias não eram inovadoras em 1965 ou 66. Grandes combates desenrolavam-se
contra o racismo e o colonialismo por todo o planeta. Malcom X organizara o
Movimento “Panteras Negras” que censurava os métodos pacifistas do pastor
Martin Luther King, e desenvolvera uma doutrina da raça negra orgulhosa da sua
identidade. O que continua a parecer-me interessante era aquela teoria ter sido
exposta por um ainda quase miúdo, estudante liceal numa cidade colonial onde
tudo era reprimido e censurado. Além disto, a sua tese de que o cristianismo
(católico ou reformado) não foi apenas o “espírito do capitalismo”
empreendedor, positivo como queria Max Weber, mas, sobretudo, o instrumento
ideológico do racismo, merece ainda ser investigada.
Artur optara pelo curso liceal de
Letras, a sua vocação estava na História. Na turma do sétimo ano, a única que
então se abrira, fez amizade com um condiscípulo negro que viria a ser ministro
num governo da Frelimo após a independência. Este, discreto e carrancudo para
os demais colegas, conversava com Artur sobre temas políticos e abriu-lhe um
novo caminho filosófico: o marxismo. Nas criações que Artur realizou no
percurso liceal recordo a edição de uma revista, audições públicas de música clássica,
ator de teatro, récitas públicas de poesia (particularmente de José Régio de
que ele foi um divulgador naquela cidade onde os eventos culturais eram coisa
rara). Artur tinha energia para dar e vender, uma magnífica força criadora. O
seu único comportamento que me deixou surpreendido pela negativa foi o modo
algo cruel como se “desembaraçou” da Gabriela, do qual, devo dizer, se
arrependeu com amargura sincera. A rapariga transferira-se para o Liceu Salazar
por desgosto.
Terminado o curso liceal cada um de
nós seguiu cursos universitários diferentes em cidades diferentes, eu, em
Lisboa, ele, no Porto. Os encontros tornaram-se mais esparsos. Artur
envolveu-se nas lutas estudantis. Foi preso pela PIDE várias vezes. Não pôde
concluir o curso superior, foi mobilizado para a guerra em África. Entretanto,
já havia publicado um romance com enorme sucesso, «Os colonos»: narra, como
sabeis, a saga de uma família, através de sucessivas gerações, que emigrou para
Moçambique nos finais do século dezanove, após a derrota do Gungunhana, e fez
uma fortuna colossal vendendo álcool aos indígenas, submetendo-os deste modo;
em seguida, utilizando o trabalho escravo, apropriou-se das melhores terras
para cultivo: um retrato da ascensão do colonialismo até à irrupção da revolta
armada. O livro, de 1971, transmite, sob forma literária, a tese já formulada
por Artur quando muito jovem: as possessões portuguesas em África apenas na
década de cinquenta receberam um influxo de desenvolvimento com as vagas de
colonos, quando já os independentismos se anunciavam por todo o globo e os
impérios coloniais europeus ruíam; nesse sentido, os colonos viviam numa
ficção. Com a colonização de massas Salazar calou as revoltas sociais eminentes
na Metrópole e tentou adiá-las nas colónias.
Mantínhamos contacto pelo telefone
quando tratávamos de assuntos políticos, para conversas que não atraíssem
demasiado a polícia política servíamo-nos da correspondência escrita. A carta
que transcrevo a seguir foi a última que recebi dele.
“ Querido amigo:
O aquartelamento no distrito de Tete onde me encontro não é mau de todo, ou
apesar de tudo. Come-se razoavelmente bem e bebe-se muito, de vez em quando as
bebedeiras minam completamente a disciplina militar…O capitão da minha
companhia é um tipo porreiro. Odeia a guerra e a ditadura. Empresto-lhe livros
que lhe fazem bom proveito. Contudo, estamos no centro da guerra e este é um
facto irremediável, temos de atacar e defendermo-nos. Em Dezembro três
povoações indígenas, Wiriyamu, Chawola e Juwaua, distantes a uns 20km da cidade
de Tete, foram arrasadas: aviões bombardearam-nas, a seguir paraquedistas,
comandos especiais, Flechas (companhias de negros “integrados”) e pides, transportados
em helicópteros, incendiaram as palhotas, o povo tentou fugir, a soldadesca e
os pides impediram, reuniram os habitantes e obrigaram-nos a bater as palmas
para se despedirem da vida, depois fuzilaram-nos à queima-roupa, juntaram os
corpos, cobriram-nos de capim e deitaram-lhes fogo. Crianças, mulheres, velhos.
Um morticínio à boa maneira dos cowboys americanos no Vietnam. Somente o
racismo pode explicar mais este “feito heroico” que devia envergonhar-nos a
todos. Consta que a igreja de cá não anda nada satisfeita com o que se passou.
A aldeia, de nome Wiriyamu, provavelmente vai constar do Livro Negro do
colonialismo. Devo esclarecer para que não faças juízo errado, não embarco em
esquemas simplistas do género “somente são culpados os de cima”. Digo-te
porquê: porque assisto a barbaridades cometidas pela soldadesca que não se
limita a esperar ordens dos generais e a cumpri-las, comporta-se brutalmente
racista a toda a hora. Todo este horror será esquecido quando esta guerra terrorista
terminar? Escreveu Jean-Paul Sartre “Quando os ricos fazem as guerras são
sempre os pobres que morrem nelas.” Esqueceu-se de acrescentar que são os
“pobres” que sujam as mãos e que acreditam nas doutrinas sanguinárias. Contrariando
ordens superiores fui inspecionar os vestígios do massacre em Wiriyamu e
Chawola: uma enorme vala comum que buldózeres haviam coberto com terra e capim.
Uma mulher jovem e um ancião olharam-me com olhos de luto. Senti uma náusea
revolver-me o estômago. Durante dois dias perdi o petite e a vontade de falar…Mudando
de assunto: nunca mais me cruzei com a Gabriela depois do desenlace do nosso
namoro. Tenho ido a Lourenço Marques mas não a procurei. Sinto por ela
nostalgia, porque não dizer: saudade? “Um imenso adeus” para evocar a
obra-prima do Raymond Chandler. Recordo com remorso o olhar triste que me pôs
quando, um ano depois da maldade que lhe fiz, a vi sentada sozinha num banco do
Jardim Botânico. Não sou boa pessoa, caro amigo, sou demasiado humano…A
Gabriela é a única mulher que me provoca saudade e arrependimento. Quando somos
jovens devíamos encarar o oceano e vê-lo não apenas como a vasta pradaria de
ondas que ansiamos conquistar, mas também enquanto babugem, espuma que se
dissolve na areia…Dentro de duas semanas acaba-se a minha tropa e regresso à
Metrópole. Tenho outro romance na calha, desta vez sobre a guerra. Enfim,
aguardo com prazer um grande almoço contigo. Um abraço deste teu amigo que não
te esqueceu!” 22 de Março de 1972
Foi a última carta do Artur. Alguns dias depois de tê-la enviado, durante
uma missão, o unimog tropeçou numa
mina. O soldado motorista morreu imediatamente. Artur foi helitransportado
gravemente ferido. De um hospital da cidade da Beira levaram-no para a
Metrópole para convalescer. Contraiu stress
pós-traumático. Não terminou o curso superior nem se conservou muito tempo em
profissão alguma. Nunca mais publicou o que quer que fosse. Deambulou pelo
mundo em busca de um alívio para o seu martírio. Suicidou-se no ano em que o século
terminou. Com esse ato carregado de simbolismo desceu o pano sobre cem anos de
tragédias.
Conto esta história – a parte desconhecida
da biografia de um grande escritor – por que senti, nesta velhice em que me
encontro, a urgente necessidade de demonstrar aos seus inúmeros leitores a
perda trágica de um ser humano de exceção que poderia ter criado muitas mais
obras admiráveis não fosse aquela inútil e criminosa guerra que o ceifou.
O romance Os colonos está traduzido em várias línguas, várias vezes premiado,
e é objeto de estudo nas mais prestigiadas academias pelo rigor e detalhe com
que aborda os racismos. Atualmente é comparado com o celebrizado romance As Benevolentes, de Jonathan Littell.
Se este retrata de modo quase sufocante o mal
absoluto, o romance de Artur de Sepúlveda obriga-nos também a mergulhar nos
abismos primitivos da alma humana. Os Colonos
provocaram, e ainda provocam, agitação, porque sob os desígnios perverso da
ditadura não se elide a culpa coletiva.
FIM
NOZES PIRES