O Senhor COMENDADOR
Naquela manhã levantara-se da cama com a teimosia dos seus
oitenta e cinco anos senis. Via bem mas estava absolutamente surdo. A mulher
ajudou-o a vestir-se, com o hábito de amor que sobrevivia nas cinzas. Porém,
desta vez, naquela manhã, teimou em ser ele a calçar as botas que
conservava como um troféu há vinte anos. Sentiu uma pontada no peito, mas
tossiu para disfarçar o susto. Teimou, após o pequeno - almoço frugal, em
descer pelo seu próprio pé as escadarias exteriores do sumptuoso solar. Para se
banhar com aquela luz límpida que se derramava sobre as tulipas e os gerânios
cuidados com desvelo e arte pela sua mulher. O possante plátano tão velho
quanto ele parecia agradecer ao céu aquela dádiva matinal. Falhou o último
degrau, ergueu o braço direito como se fosse saudar um chefe imaginário e
mergulhou no lajedo sem um ai. A mulher, que o vigiava lá do alto, acorreu
alvoroçada aos gritos. Soergueu-lhe a cabeça e chamou-o pelo mesmo diminutivo
com que o tratara durante cinquenta anos. Viu-lhe nos olhos uma cortina de
terror que foi baixando lentamente ao mesmo tempo que ele murmurava estas
palavras definitivas: Só tu me conheceste!
O comendador Silvestre Brás da Cunha nascera oitenta e cinco
anos antes num povoado remoto encostado à fronteira com a Estremadura espanhola.
A família não era pobre, embora rústica. O pai assenhoreara-se com finas manhas
e cumplicidades políticas com o regedor de uma vasta porção de baldios, naquele
célebre episódio em que o Salazar os expropriara aos povos para cobrir Portugal
de eucaliptos; fora contrabandista, denunciara à polícia refugiados da guerra
civil, exceto aqueles que lhe untavam as mãos. Silvestre apanhou desde bem cedo
o engenho e a arte de seu pai dito “O Cabreiro”. Enviado para o seminário para
ser bispo (o pai não o fez por menos) desistiu da carreira quando, certo dia
que se passeava na rua principal, viu no jardim de um palacete uma menina a
cortar rosas de uma floreira. Ela olhou para ele com uns olhos celestes,
sorriu-lhe com uns lábios de romã entreabertos e, logo ali, Silvestre soube que
o seu futuro era outro. Esperou por ela quatro infindáveis anos para se
desposarem para toda a vida.
O pai morreu pouco depois fulminado por uma pneumonia quando
uma tempestade súbita o acossou desprevenido andava ele a reunir no monte umas
cabras gordas que não lhe pertenciam. Depressa esqueceu o pai e o povoléu.
Dividida a grossa herança ente ele e a mãe, Silvestre pegou na mulher e partiu
para Lisboa. Estudou na universidade por correspondência, estoirou na moina as
ofertas generosas do sogro rico, empregou-se num escritório de advogados com
uma carta de recomendação do regedor que fora íntimo amigo do pai e destacado
agente da PIDE. O escritório era, ou foi-se tornando reputadíssimo junto de
banqueiros e outros ilustres lisboetas. Silvestre era pau- para -toda -a –obra,
dedicado aos chefes, fiel como um cão- rafeiro para os superiores, mastim para
os de baixo-. Com a ajuda de um professor do regime tirou o curso de Direito
coma nota imerecida porque, na realidade, os livros desagradavam-lhe
profundamente. Na moradia que mais tarde adquiriu possuía uma razoável
biblioteca, porém os livros comprava-os a mulher e era ela naturalmente que os
lia. Nunca ninguém se deu conta da aversão dele pelos livros, nas festas e
serões com as elites com que teve que se envolver dezenas de anos, sempre se
saía bem citando de cor o que a mulher contava sobre os livros que ela lia.
Nunca ninguém se deu conta que não sabia escrever uma carta sem erros da
palmatória, porque sempre as ditava às secretárias que discretamente as
corrigiam.
Com Marcelo Caetano fez-se marcelista. Com o 25 de Abril
fez-se democrata-cristão. Com o governo da AD fez-se social-democrata. Com o
andar dos anos, podre de rico e cada vez mais conservador, abandonou o “social”
porque já se achava acima da obrigação de pagar impostos. Exclamava com aquela
sua voz de barítono: Sou um self-made-man,
não tenho agora de sustentar quem não se made
a si próprio!”. Este “made” suscitava
frequentemente sorrisos de admiração, pela graça fina, pela ironia altiva de
aristocrata. Realmente Silvestre Brás da Cunha (o “da” acrescentou-o ele ao
apelido) tinha o porte aristocrático de um banqueiro. A esta convicção
conciliava ele a sua crença católica sem mácula. De facto, não falhou uma única
vez a missa dominical, ajoelhado na primeira fila, comungando sem
arrependimento.
Derrotado o abalo revolucionário recuperou as terras, mandou
plantar olivais de cultura intensiva, abocanhou a cooperativa agrícola “A
Bandeira Vermelha”, lançou-se em Lisboa no casino da Bolsa, comprou cem mil acções no BPN para a seguir as vender pelo dobro do preço, foi nomeado
administrador consultivo de um Banco que de português só mantinha o nome, o
escritório de advogados que passou a chefiar elaborava pareceres e
projectos-de-lei pagos a peso de oiro pelo erário público, rendeu-se às novas
tecnologias como accionista de topo, viu no Brasil e em Angola mercados
promissores. Rodeara-se de assessores, amestrados bem cedo nos bancos das
universidades, que lhe redigiam os pareceres, adivinhavam as “janelas de
oportunidades”, “os nichos de negócio”, aparavam-no dos golpes dos concorrentes
nas arenas de vampiros; de um deles fez ministro e dele recebeu a respectiva
retribuição. O chefe do governo telefonava-lhe a pedir conselhos.
Insigne cidadão ofertava aos pobres nos frequentes peditórios
com que o assediavam; obedecendo à mulher, como sempre na vida íntima conjugal,
mandou construir às suas custas um pavilhão polidesportivo da colectividade da
sua terra natal, onde o homenagearam com uma lápide alusiva com o seu nome
escrito a letras doiradas. Fora convidado por sucessivos governos para altos
cargos, inclusivamente certa vez para ministro da Justiça, porém sempre
recusou. “Não preciso da política, os políticos é que precisam de mim!”, dizia para
os seus parceiros mais chegados nos pacatos serões de sueca e brandy. Foi
agraciado com a Comenda pelo Presidente da República nos seus oitenta anos de
vida impoluta.
Aos oitenta e cinco anos morreu ao fundo da escada, mais
habituado a subir do que a descer. “Só tu me conheceste!”. A mulher,
contendo-se para não romper num choro de solidão abrupta, um braço a
soerguer-lhe a cabeça, sussurrou-lhe ao ouvido morto: Sim, só eu te conheci
verdadeiramente!
NOZES PIRES
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