segunda-feira, 10 de julho de 2017


O Senhor COMENDADOR

Naquela manhã levantara-se da cama com a teimosia dos seus oitenta e cinco anos senis. Via bem mas estava absolutamente surdo. A mulher ajudou-o a vestir-se, com o hábito de amor que sobrevivia nas cinzas. Porém, desta vez, naquela manhã, teimou em ser ele a calçar as botas que conservava como um troféu há vinte anos. Sentiu uma pontada no peito, mas tossiu para disfarçar o susto. Teimou, após o pequeno - almoço frugal, em descer pelo seu próprio pé as escadarias exteriores do sumptuoso solar. Para se banhar com aquela luz límpida que se derramava sobre as tulipas e os gerânios cuidados com desvelo e arte pela sua mulher. O possante plátano tão velho quanto ele parecia agradecer ao céu aquela dádiva matinal. Falhou o último degrau, ergueu o braço direito como se fosse saudar um chefe imaginário e mergulhou no lajedo sem um ai. A mulher, que o vigiava lá do alto, acorreu alvoroçada aos gritos. Soergueu-lhe a cabeça e chamou-o pelo mesmo diminutivo com que o tratara durante cinquenta anos. Viu-lhe nos olhos uma cortina de terror que foi baixando lentamente ao mesmo tempo que ele murmurava estas palavras definitivas: Só tu me conheceste!
O comendador Silvestre Brás da Cunha nascera oitenta e cinco anos antes num povoado remoto encostado à fronteira com a Estremadura espanhola. A família não era pobre, embora rústica. O pai assenhoreara-se com finas manhas e cumplicidades políticas com o regedor de uma vasta porção de baldios, naquele célebre episódio em que o Salazar os expropriara aos povos para cobrir Portugal de eucaliptos; fora contrabandista, denunciara à polícia refugiados da guerra civil, exceto aqueles que lhe untavam as mãos. Silvestre apanhou desde bem cedo o engenho e a arte de seu pai dito “O Cabreiro”. Enviado para o seminário para ser bispo (o pai não o fez por menos) desistiu da carreira quando, certo dia que se passeava na rua principal, viu no jardim de um palacete uma menina a cortar rosas de uma floreira. Ela olhou para ele com uns olhos celestes, sorriu-lhe com uns lábios de romã entreabertos e, logo ali, Silvestre soube que o seu futuro era outro. Esperou por ela quatro infindáveis anos para se desposarem para toda a vida.
O pai morreu pouco depois fulminado por uma pneumonia quando uma tempestade súbita o acossou desprevenido andava ele a reunir no monte umas cabras gordas que não lhe pertenciam. Depressa esqueceu o pai e o povoléu. Dividida a grossa herança ente ele e a mãe, Silvestre pegou na mulher e partiu para Lisboa. Estudou na universidade por correspondência, estoirou na moina as ofertas generosas do sogro rico, empregou-se num escritório de advogados com uma carta de recomendação do regedor que fora íntimo amigo do pai e destacado agente da PIDE. O escritório era, ou foi-se tornando reputadíssimo junto de banqueiros e outros ilustres lisboetas. Silvestre era pau- para -toda -a –obra, dedicado aos chefes, fiel como um cão- rafeiro para os superiores, mastim para os de baixo-. Com a ajuda de um professor do regime tirou o curso de Direito coma nota imerecida porque, na realidade, os livros desagradavam-lhe profundamente. Na moradia que mais tarde adquiriu possuía uma razoável biblioteca, porém os livros comprava-os a mulher e era ela naturalmente que os lia. Nunca ninguém se deu conta da aversão dele pelos livros, nas festas e serões com as elites com que teve que se envolver dezenas de anos, sempre se saía bem citando de cor o que a mulher contava sobre os livros que ela lia. Nunca ninguém se deu conta que não sabia escrever uma carta sem erros da palmatória, porque sempre as ditava às secretárias que discretamente as corrigiam.
Com Marcelo Caetano fez-se marcelista. Com o 25 de Abril fez-se democrata-cristão. Com o governo da AD fez-se social-democrata. Com o andar dos anos, podre de rico e cada vez mais conservador, abandonou o “social” porque já se achava acima da obrigação de pagar impostos. Exclamava com aquela sua voz de barítono: Sou um self-made-man, não tenho agora de sustentar quem não se made a si próprio!”. Este “made” suscitava frequentemente sorrisos de admiração, pela graça fina, pela ironia altiva de aristocrata. Realmente Silvestre Brás da Cunha (o “da” acrescentou-o ele ao apelido) tinha o porte aristocrático de um banqueiro. A esta convicção conciliava ele a sua crença católica sem mácula. De facto, não falhou uma única vez a missa dominical, ajoelhado na primeira fila, comungando sem arrependimento.
Derrotado o abalo revolucionário recuperou as terras, mandou plantar olivais de cultura intensiva, abocanhou a cooperativa agrícola “A Bandeira Vermelha”, lançou-se em Lisboa no casino da Bolsa, comprou cem mil acções no BPN para a seguir as vender pelo dobro do preço, foi nomeado administrador consultivo de um Banco que de português só mantinha o nome, o escritório de advogados que passou a chefiar elaborava pareceres e projectos-de-lei pagos a peso de oiro pelo erário público, rendeu-se às novas tecnologias como accionista de topo, viu no Brasil e em Angola mercados promissores. Rodeara-se de assessores, amestrados bem cedo nos bancos das universidades, que lhe redigiam os pareceres, adivinhavam as “janelas de oportunidades”, “os nichos de negócio”, aparavam-no dos golpes dos concorrentes nas arenas de vampiros; de um deles fez ministro e dele recebeu a respectiva retribuição. O chefe do governo telefonava-lhe a pedir conselhos.
Insigne cidadão ofertava aos pobres nos frequentes peditórios com que o assediavam; obedecendo à mulher, como sempre na vida íntima conjugal, mandou construir às suas custas um pavilhão polidesportivo da colectividade da sua terra natal, onde o homenagearam com uma lápide alusiva com o seu nome escrito a letras doiradas. Fora convidado por sucessivos governos para altos cargos, inclusivamente certa vez para ministro da Justiça, porém sempre recusou. “Não preciso da política, os políticos é que precisam de mim!”, dizia para os seus parceiros mais chegados nos pacatos serões de sueca e brandy. Foi agraciado com a Comenda pelo Presidente da República nos seus oitenta anos de vida impoluta.
Aos oitenta e cinco anos morreu ao fundo da escada, mais habituado a subir do que a descer. “Só tu me conheceste!”. A mulher, contendo-se para não romper num choro de solidão abrupta, um braço a soerguer-lhe a cabeça, sussurrou-lhe ao ouvido morto: Sim, só eu te conheci verdadeiramente!

NOZES PIRES
  

Sem comentários:

Enviar um comentário