FÁBULAS
O medo
Na antiquíssima China houve um
tempo em que Confúcio esteve recolhido num isolado ermitério. Contraíra um
penoso mal-estar nos rins e, contra isso, entregou-se a uma rigorosa dieta:
evitou comida, bebida e contactos humanos. Enfadado com a maleita interrompeu o
caudal de sucessivos pedidos de audiências para conselhos e sentenças.
Seis meses depois, quando se
sentiu recuperado, e sem que tivesse sido por saudades que não sentia, ou gosto
em recomeçar a longa fila de lamúrias que sempre o aguardavam, decidiu-se a
descer à aldeia. Chegara-lhe aos ouvidos rumores de uma iminente catástrofe.
Situações calamitosas eram vulgares naqueles conturbados tempos, em que
disputas, territoriais ou de soberanias ofendidas, se resolviam a golpes de espada.
O Mestre granjeara fama merecida pelos seus conselhos sensatos imbuídos de uma
filosofia prática destituída de especulações metafísicas: os filhos devem
respeitar os pais, os mais novos devem respeitar os mais velhos, as tradições
quando não ofensivas devem ser acatadas, “Não faças aos outros o que não queres
que te façam a ti”, sê compassivo e ama a justiça que ordena que se devolva a
cada um o que de cada um se usurpou.
Desceu à aldeia, portanto. E o
que viu e ouviu deixou-o estupefacto. Os habitantes temiam a noite!
Relataram-lhe que, pela calada da noite, figuras fantasmagóricas desciam das
colinas sobranceiras com sinistros archotes quais círios a arder, lençóis
brancos a esvoaçar, gritos e uivos assustadores, tambores a rufar, passeavam-se
pelos caminhos, perseguiam os viandantes noctívagos, saqueavam as caravanas dos
cameleiros, golpeavam as janelas dos trabalhadores que repousavam, induziam
pesadelos terríveis nas crianças. Enfim, Confúcio encontrou uma aldeia de gentes que outrora fora feliz, completamente aterrorizada.
O Mestre meditou algum tempo. Ensinara
sempre a ser-se solícito, a tolerar os hábitos ancestrais, os direitos
adquiridos, a terra a quem a trabalha. E as superstições aborreciam-no deveras.
Pediu, então, que os habitantes se reunissem na praça e exortou-os com estas
palavras:
“Em sessenta anos de vida nunca
vi um espectro ou uma alma penada. Os mortos que enterrem os mortos! Se quereis
expulsar criaturas que imaginais como demónios, pensai antes que só os vivos
incomodam os vivos. Dizeis-me que eles vos assustam de noite e saqueiam os
vossos campos e celeiros de madrugada. Pois bem! Cavai um fosso e erguei uma
cerca ao redor da aldeia. A aldeia é pequena e vós sois bastantes. Armai-vos de
chuços e gritai tão alto quanto puderdes.”
Os aldeões assim fizeram. Todos
juntos e unidos dominaram os medos. Durante três noites os malfeitores
investiram com urros horrendos, mas sem resultado algum. Os aldeões resistiram
nos seus postos, confiantes na sua força e com a presença serena do Mestre.
Pela terceira madrugada, já o sol se levantava, irromperam pelo fosso e pela
cerca e atacaram em chusmas os mortos-vivos que deambulavam pelo vale dispersos
e desorientados. Foi um ver-se-te-avias! Ei-los a fugir, desembaraçando-se dos
lençóis e abandonando o produto dos saques!
O sossego regressou à aldeia.
Confúcio regressou ao ermitério. Mais tarde uma embaixada de anciãos e jovens
visitou-o para lhe agradecer a salvação, oferendo-lhe um gordo galo e outras
viandas. Contaram-lhe então o que entretanto vieram a descobrir: os meliantes
não eram senão criados e funcionários do mandarim, o qual caíra sob a alçada da
justiça por corrupção, extorsão e outros crimes.
Disse Confúcio: “ Ide e preservai
a terra comum, trabalhada pelo suor do vosso rosto! Não vos salvei, fostes vós
com a vossa união! É pelo medo que os mandantes vos dominam. Quanto mais medo
mais desemprego, quanto mais desemprego, mais fome e mais medo.”
Um ancião cofiou a longa barbicha
e rematou:
“Sim, Mestre, é a economia do
medo!”
NOZES PIRES
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