segunda-feira, 10 de julho de 2017

Ficções



O extraterrestre

Tudo aconteceu inesperadamente num outono que hesitava entre a chuva e o bom tempo. A velocidade da nave alienígena fora tal que os astrónomos e os satélites não tiveram tempo de esfregar um olho. Aterrou no deserto do Saara e ocupou-o todo. Meia dúzia de beduínos viram-se de súbito sob um tecto gigantesco de sombra que apagou trilhos e dunas. Os jornalistas acorreram à pressa para captarem o instante supremo em que uma porta colossal se abriu no casco da nave e um gigante desceu, tranquilo e imponente, para as areias do deserto. Espalhada a notícia aos quatro ventos, o planeta parou, multidões imensas aglomeram-se frente aos ecrãs colocados nas praças das capitais, famílias juntaram-se nos lares temendo o juízo final. Os exércitos imperiais confluíram para o local com os seus porta-aviões, couraçados, bombardeiros. Baterias de mísseis atómicos acertaram as coordenadas para disparos letais ao primeiro sinal de perigo.
O gigante tinha pernas e braços e uns olhos doces e claros como o céu do deserto. Pareceu aguardar que o máximo de jornalistas se acotovelasse aos seus pés (todo o mundo tremia, suspenso entre a curiosidade e o terror). Por fim, o gigante colocou na boca um aparelho que lhe permitiu falar como os humanos. E disse:
-“ Saudações! Venho de um planeta longínquo que os vossos mapas astrais não rastrearam, da nebulosa de Andrómeda. Venho em paz e espero ser recebido em paz. Acompanhamos o vosso percurso neste mundo que habitais desde que os peixes saltaram para a terra, as araucárias deram flor há 150 milhões de anos, os répteis ganharam asas, cinco cataclismos extinguiram a vida, criaturinhas inofensivas saíram das tocas e iluminaram o planeta com a luz da inteligência; das florestas profundas, das savanas que emergiram do gelo, a vossa espécie evoluiu mercê do trabalho e do engenho, domou o trigo e a cevada, os rios e os estuários, ergueu cidades e fortins, pirâmides contra a morte e o esquecimento, organizou exércitos e escravizou os vencidos, inventou a escrita, a ciência e todos os sortilégios contra o sofrimento. Entre subordinados e senhores, entre escravos e patrícios, entre bárbaros e civilizados, entre plebeus e morgados, reis e vassalos, proletários e capitalistas, a vossa história é um longo e sofrido rol de contradições. Talvez por isso possuís um talento que desconhecemos: a arte! Do húmus sangrento das vossas atrocidades e vãs glórias brotou o génio dos vossos Leonardos e Picassos, Bach e Beethoven, Homero e Ésquilo! Como se a vossa miséria fosse a vossa grandeza. Com o último urro quando abandonastes as árvores, com o último guincho com que abandonastes as tocas, com os primeiros hieróglifos que inventastes para venerar deuses e homens, com a primeira espada com que degolaste mulheres e crianças, com a primeira greve, a primeira barricada, com a primeira proclamação dos direitos de todos os homens sem distinção de raça e fortuna, uma chama, uma exigência, uma utopia, iluminou as vossas vidas miseráveis, brutas e tortuosas: a liberdade!
Com a vossa ciência e muito mais do que ela construímos a nossa casa comum sem fomes e epidemias, sem dominadores e dominados; por isso surpreende que com a vossa experiência acumulada de milénios permaneceis os mesmos. Qual a diferença entre os tolos marinheiros que se enfeitiçaram com as sereias na “Odisseia” e o feitiço de hoje das mercadorias? Apenas mudastes o escravo em assalariado “livre”, as contas de vidro em dinheiro virtual, as coroas dos reis em gravatas de seda, os aristocratas em banqueiros, os coches em jatos particulares, os castelos em palácios na Quinta da Marinha. Para que vos serviu terdes conhecido dois santos universais: Jesus e Espinosa? Que saibamos não existe outra raça mais contraditória do que a vossa! Do mal fazeis o bem, do bem fazeis o mal. Que prodígios detendes na vossa posse com a vossa ciência, a vossa técnica, o vosso génio artístico! Não faltará muito, sei-o eu, para que decifreis os mais profundos enigmas do universo; contudo, o vosso mundo não resistirá muito mais às calamidades que lhe infligis; o vosso abjecto desprezo pela vida alheia; a vossa ganância sem limites; a vossa incontrolada loucura que vos conduz para novas e intermináveis guerras; cada passo que dais em frente, dois passos para trás. O vosso século vinte deu-vos, ao mesmo tempo, Einstein e o socialismo, duas guerras que mataram mais gente que em toda a história da humanidade.
Se acabais de saber que ocupais um lugar periférico em uma das 170 biliões de galáxias do universo observável, que o vosso Sol não é mais do que uma estrela média em triliões de estrelas da Via Láctea, que a vossa vida singular não dura mais que a chama de uma vela, que a Vida assim como brotou, assim se pode extinguir, porque não arrepiais caminho? Porque a matéria dos sonhos dos miseráveis, a Esperança, não se traduz em realidade?”
O gigante assim falou. Depois, recolheu o dispositivo tradutor e começou a subir a rampa para regressar à nave colossal. Estacou. Colocou de novo a máquina tradutora e acrescentou estas palavras: “Recebemos o disco com a mensagem gravada que enviastes para o espaço há mais de 36 anos na sonda Voyager 1. Por causa dela decidimos retribuir. Tranquilizai-vos: não tencionamos colonizar ninguém. Nem tão pouco salvar-vos! Saudações!”
E, num movimento suavíssimo, brilhando como um sol, a nave descolou. Atónitos, os militares afastaram o dedo do gatilho.
NOZES PIRES

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