O extraterrestre
Tudo aconteceu inesperadamente num
outono que hesitava entre a chuva e o bom tempo. A velocidade da nave
alienígena fora tal que os astrónomos e os satélites não tiveram tempo de
esfregar um olho. Aterrou no deserto do Saara e ocupou-o todo. Meia dúzia de beduínos
viram-se de súbito sob um tecto gigantesco de sombra que apagou trilhos e dunas.
Os jornalistas acorreram à pressa para captarem o instante supremo em que uma
porta colossal se abriu no casco da nave e um gigante desceu, tranquilo e
imponente, para as areias do deserto. Espalhada a notícia aos quatro ventos, o
planeta parou, multidões imensas aglomeram-se frente aos ecrãs colocados nas
praças das capitais, famílias juntaram-se nos lares temendo o juízo final. Os
exércitos imperiais confluíram para o local com os seus porta-aviões,
couraçados, bombardeiros. Baterias de mísseis atómicos acertaram as coordenadas
para disparos letais ao primeiro sinal de perigo.
O gigante tinha pernas e braços e uns
olhos doces e claros como o céu do deserto. Pareceu aguardar que o máximo de
jornalistas se acotovelasse aos seus pés (todo o mundo tremia, suspenso entre a
curiosidade e o terror). Por fim, o gigante colocou na boca um aparelho que lhe
permitiu falar como os humanos. E disse:
-“ Saudações! Venho de um planeta
longínquo que os vossos mapas astrais não rastrearam, da nebulosa de Andrómeda.
Venho em paz e espero ser recebido em paz. Acompanhamos o vosso percurso neste
mundo que habitais desde que os peixes saltaram para a terra, as araucárias
deram flor há 150 milhões de anos, os répteis ganharam asas, cinco cataclismos
extinguiram a vida, criaturinhas inofensivas saíram das tocas e iluminaram o
planeta com a luz da inteligência; das florestas profundas, das savanas que
emergiram do gelo, a vossa espécie evoluiu mercê do trabalho e do engenho,
domou o trigo e a cevada, os rios e os estuários, ergueu cidades e fortins,
pirâmides contra a morte e o esquecimento, organizou exércitos e escravizou os
vencidos, inventou a escrita, a ciência e todos os sortilégios contra o
sofrimento. Entre subordinados e senhores, entre escravos e patrícios, entre
bárbaros e civilizados, entre plebeus e morgados, reis e vassalos, proletários
e capitalistas, a vossa história é um longo e sofrido rol de contradições.
Talvez por isso possuís um talento que desconhecemos: a arte! Do húmus
sangrento das vossas atrocidades e vãs glórias brotou o génio dos vossos
Leonardos e Picassos, Bach e Beethoven, Homero e Ésquilo! Como se a vossa
miséria fosse a vossa grandeza. Com o último urro quando abandonastes as
árvores, com o último guincho com que abandonastes as tocas, com os primeiros hieróglifos
que inventastes para venerar deuses e homens, com a primeira espada com que
degolaste mulheres e crianças, com a primeira greve, a primeira barricada, com
a primeira proclamação dos direitos de todos os homens sem distinção de raça e
fortuna, uma chama, uma exigência, uma utopia, iluminou as vossas vidas
miseráveis, brutas e tortuosas: a liberdade!
Com a vossa ciência e muito mais do
que ela construímos a nossa casa comum sem fomes e epidemias, sem dominadores e
dominados; por isso surpreende que com a vossa experiência acumulada de
milénios permaneceis os mesmos. Qual a diferença entre os tolos marinheiros que
se enfeitiçaram com as sereias na “Odisseia” e o feitiço de hoje das
mercadorias? Apenas mudastes o escravo em assalariado “livre”, as contas de
vidro em dinheiro virtual, as coroas dos reis em gravatas de seda, os
aristocratas em banqueiros, os coches em jatos particulares, os castelos em
palácios na Quinta da Marinha. Para que vos serviu terdes conhecido dois santos
universais: Jesus e Espinosa? Que saibamos não existe outra raça mais
contraditória do que a vossa! Do mal fazeis o bem, do bem fazeis o mal. Que
prodígios detendes na vossa posse com a vossa ciência, a vossa técnica, o vosso
génio artístico! Não faltará muito, sei-o eu, para que decifreis os mais
profundos enigmas do universo; contudo, o vosso mundo não resistirá muito mais
às calamidades que lhe infligis; o vosso abjecto desprezo pela vida alheia; a
vossa ganância sem limites; a vossa incontrolada loucura que vos conduz para
novas e intermináveis guerras; cada passo que dais em frente, dois passos para
trás. O vosso século vinte deu-vos, ao mesmo tempo, Einstein e o socialismo,
duas guerras que mataram mais gente que em toda a história da humanidade.
Se acabais de saber que ocupais um
lugar periférico em uma das 170 biliões de galáxias do universo observável, que
o vosso Sol não é mais do que uma estrela média em triliões de estrelas da Via
Láctea, que a vossa vida singular não dura mais que a chama de uma vela, que a
Vida assim como brotou, assim se pode extinguir, porque não arrepiais caminho?
Porque a matéria dos sonhos dos miseráveis, a Esperança, não se traduz em
realidade?”
O gigante assim falou. Depois,
recolheu o dispositivo tradutor e começou a subir a rampa para regressar à nave
colossal. Estacou. Colocou de novo a máquina tradutora e acrescentou estas
palavras: “Recebemos o disco com a mensagem gravada que enviastes para o espaço
há mais de 36 anos na sonda Voyager 1.
Por causa dela decidimos retribuir. Tranquilizai-vos: não tencionamos colonizar
ninguém. Nem tão pouco salvar-vos! Saudações!”
E, num movimento suavíssimo,
brilhando como um sol, a nave descolou. Atónitos, os militares afastaram o dedo
do gatilho.
NOZES PIRES
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